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Intubação orotraqueal: um divisor de águas na anestesia moderna

Uma das coisas que mais trazem segurança para a anestesia (de qualquer espécie) é o acesso à via aérea do paciente. Seja para ofertar anestésicos voláteis ou para assistir e auxiliar a ventilação a intubação orotraqueal é uma manobra indispensável.

Um trabalho recente, publicado na Veterinary Anesthesia and Analgesia, aponta que a maioria dos anestesistas concordam que ‘a intubação deve ser realizada em todos os pacientes submetidos à anestesia geral’ e que ‘a intubação reduz a mortalidade em cães’.

Embora intubar um cão ou gato seja (ou deva ser) uma manobra relativamente simples, existem complicações que devem ser conhecidas e, principalmente, evitadas.

Vazamento do manguito

Exceto em espécies onde não se recomende utilizar tubos traqueais com balão (aves e repteis), o uso deste tipo de tubo e a insuflação do balão são de grande importância para permitir a assistência ventilatória e evitar uma possível aspiração de conteúdo que esteja presente na cavidade oral (regurgitado ou não).

Testar o manguito de insuflação e o balão antes de intubar o paciente é algo simples e que minimiza este tipo de ocorrência. Sempre realize esta etapa.

Tosse e laringoespasmo durante a intubação

Após induzirmos a anestesia geral e confirmado o adequado relaxamento do paciente procedemos com a inserção do tubo pela laringe. Embora o paciente se apresente bastante relaxado (com perda de tônus) os reflexos laríngeos podem não estar completamente abolidos, resultando em laringoespasmo (mais comum em gatos) ou reflexo intenso de tosse ao introduzir o tubo na traqueia (em cães e gatos).

Além de dificultar a tarefa da intubação, estes eventos podem resultar em lesão laríngea. Por isso devemos nos cercar de medidas que reduzam estas complicações e facilitem o nosso trabalho. Em cães, podemos usar lidocaína IV ou pulverizada na laringe (periglótica) – nesse sentido prefiro a via IV, pois atenua a tosse e resposta pressórica à intubação. Em gatos, dada à maior sensibilidade aos anestésicos locais (tema para outro post…), utilize somente a via tópica, periglótica.

* evite usar os sprays de lidocaína 10%, pois a quantidade de lidocaína a cada borrifada é alta; um atomizador pode nos ajudar nessa tarefa.

Atomizador

Intubação esofágica

Sob uma boa laringoscopia é praticamente impossível não observarmos a glote e direcionarmos corretamente o tubo para a traqueia. Entretanto, devido ao pequeno tamanho de alguns pacientes ou naqueles em situações de via aérea difícil (braquicefálicos em geral ou aqueles com prolongamento de palato, ou até mesmo pacientes com massas na cavidade oral ou faringe), a intubação esofágica poderá ocorrer. Devemos estar aptos a identificar isso prontamente (por inspeção, observação da movimentação de ar no tubo durante a ventilação ou auxiliado pela capnografia) e corrigir a posição do tubo.

Orientações:

  • Conheça bem a anatomia da via aérea e sua relação com o esôfago;
  • Posicione corretamente o paciente: eu – particularmente – prefiro o decúbito esternal;
  • Faça a laringoscopia e identifique as estruturas da laringe e adjacentes (palato mole, epiglote, pregas vocais, aritenoides) e a glote (abertura para a traqueia) propriamente dita;
  • Segure o tubo mais próximo à conexão com o circuito anestésico – e não próximo ao balão (afinal sua mão não precisa entrar na boca do paciente).
Anatomia da laringe (cão)

Intubação endobrônquica / seletiva

Aqui temos uma complicação pouco comum, mas potencial em casos onde o tubo é inserido muito além do necessário na traqueia.

Uma boa e segura intubação significa introduzir o suficiente do tubo na traqueia e fixá-lo bem.

Mas o quanto é suficiente?

Basicamente um pouco além do balão passar pela glote. Na verdade, a maioria dos tubos já vem com uma marca para delimitar o quanto deve ser inserido. Esta marca costuma ser um (ou dois) traços logo após o balão. Essa marca deve ficar alinhada na glote e não ir muito além dela.

A marca apontada na seta é o limite ideal até onde o tubo deve ser inserido na glote.
Marca de delimitação da inserção do tubo.

Extubação acidental

Aqui temos um problema que pode ser comum. A extubação acidental. Isso pode representar um grande problema para o anestesista, principalmente em cirurgias de cabeça e pescoço – onde perdemos o acesso à cabeça do paciente em função do campo cirúrgico. Numa situação dessas, a saída do tubo e necessidade de recolocação se traduzem numa intercorrência potencialmente grave durante a cirurgia.

Seja pela movimentação da cabeça do paciente (para posicionamento) ou por mudanças na posição do circuito anestésico poderá haver tração e remoção do tubo traqueal. E para evitarmos isso temos apenas uma saída: FIXAR ADEQUADAMENTE O TUBO.

Pode ser com uma amarra ao redor do tubo e fixando-o na mandíbula, maxila ou atrás da cabeça? Sim!

Pode ser com um elástico abraçando o tubo e posicionado atrás da cabeça? Também. Mas tome os devidos cuidados, pois o elástico não assegura que tubo não se movimentará.

Laceração e trauma durante a intubação

A intubação jamais deve ser algo “forçado”. O tubo é introduzido suavemente pela glote. Tentativas sucessivas e sobre grande pressão/força, com movimentação brusca do tubo poderá ocasionar trauma e, no pior cenário, laceração laríngea ou traqueal. Tudo isso com consequências graves (edema de laringe, pneumomediastino, pneumotórax, enfisema subcutâneo) e que podem, inclusive, levar o paciente a óbito.

Para evitar tal situação desagradável vamos respeitar alguns pontos:

  • Induzir a anestesia e promover o relaxamento adequado do paciente;
  • Posicionar o paciente da melhor maneira;
  • Fazer a laringoscopia para visualizar todas as estruturas de interesse;
  • Usar adjuvantes (lidocaína IV ou periglótica) que permitam a intubação sem respostas por parte do paciente (tosse, laringoespasmo, mudanças bruscas na hemodinâmica)
  • Escolher adequadamente o tamanho (calibre) do tubo traqueal.

Ao respeitarmos esses aspectos, as chances de haver qualquer tipo de lesão relacionada à intubação serão mínimas.

Outras complicações

Até agora listei as principais complicações e desafios que iremos enfrentar durante a intubação orotraqueal em cães e gatos. Mas podemos também ter que lidar com outros eventos – a maioria após a extubação:

  • Tosse após extubação
  • Oclusão do tubo traqueal
  • Sangue no tubo pós-extubação
  • Edema laríngeo pós-extubação
  • Mudanças na “voz” e dificuldade de deglutição pós-extubação
  • Manguito que não desinfla para a extubação
  • Necrose e ruptura traqueal pós-extubação

Existe algum “segredo” para melhorar a nossa eficácia na intubação de nossos pacientes? A resposta é SIM e os pontos-chave para isso são:

  • Conheça muito bem a anatomia da via aérea da espécie em questão;
  • Antes de iniciar a técnica certifique-se de que todos os materiais e insumos que precisará estão disponíveis;
  • Tenha um bom laringoscópio com laminas de diferentes tamanhos;
  • Separe sempre 2 ou 3 tubos (com variação de ± 0,5 mm em relação à sua escolha inicial);
  • Deprima o paciente o suficiente para ter o relaxamento que precisa;
  • Lidocaína IV (cão) ou tópica (cão ou gato);
  • Paciente posicionado da forma que for melhor para sua técnica;
  • Visualize a laringe;
  • Use o bisel e a curvatura da tubo a seu favor.

Espero ter sido claro o suficiente neste post sobre intubação e que o texto o ajude (principalmente se você ainda sofre com a técnica) e tenha relevância em sua vida. Essa é uma primeira versão sobre esse tópico e que, com certeza, será atualizada à medida que novas ideias sobre o assunto forem surgindo e mídias que facilitem a compreensão da técnica estiverem disponíveis.

Conto com seus comentários e opiniões para juntos tingirmos esse objetivo.

Até a próxima atualização.

Zanoni

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