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Aplicação intraperitoneal de anestésicos locais : mais uma abordagem para a analgesia?

As anestesias para castração de cães e gatos são procedimentos rotineiros para o anestesista veterinário. Embora o procedimento cirúrgico seja extremamente comum, sua complexidade habitualmente é subestimada quando consideramos a ovariohisterectomia (OH).

A natureza do procedimento por si – uma laparotomia – já implica em grande habilidade cirúrgica, associada à necessidade de uma boa condução da anestesia geral para assegurar plano anestésico adequado, unificando bom relaxamento muscular, analgesia satisfatória e estabilidade fisiológica. E, também, garantir uma recuperação pós-anestésica satisfatória para que os pacientes retornem às suas atividades habituais precocemente.

O manejo da dor (trans- e pós-operatória) em cirurgias abdominais é sempre um grande desafio!

Estratégias diferentes, incluindo infusões analgésicas (lidocaína, cetamina, opioides, dexmedetomidina) durante a anestesia, anti-inflamatórios não esteroidais e outros analgésicos (opioides ou não) no período pós-operatório são utilizadas com frequência. Podemos ainda considerar a anestesia locorregional (ALR), como a anestesia epidural, o bloqueio do plano transverso do abdome, do plano quadrado lombar e da bainha do reto abdominal como possíveis técnicas a serem associadas; entretanto, características do paciente, indisponibilidade de equipamento e/ou material adequado, ou até mesmo falta de treinamento podem impedir a aplicação destas técnicas de ALR.

Por isso venho aqui expor um pouco sobre uma técnica que pode contribuir bastante para a analgesia pós-operatória – a instilação intraperitoneal (IP) de anestésicos locais. Após a incisão da linha alba o anestésico local é depositado na cavidade peritoneal. Pode-se até considerar fazer essa instilação periovariana (embora a grande contribuição seja para o pós-operatório).

  • Qual anestésico local? Bupivacaína é a melhor escolha, dada sua longa duração.
  • Qual volume/dose? Preferencialmente um que não exceda a dose toxica do AL escolhido (2 mg/Kg, no caso da bupivacaína). Mas vocês verão que há bastante variabilidade (e aumento) de doses na literatura.

Mas o quão isso será eficaz?

O primeiro estudo clínico que fez esse tipo de avaliação foi publicado em 2004 por Carpenter e seus colaboradores (Vet Anaesth Analg. 2004 Jan;31(1):46-52). Os cães deste estudo receberam 4,4 mg/Kg de bupivacaína (BUPI) OU 8,8 mg/Kg de lidocaína (LIDO) OU solução salina (CONTROLE) pela via IP. Na avaliação de dor pós-operatória (em até 18 horas) verificou-se que os escores de dor foram sempre menores no grupo BUPI. Este tratamento também implicou em menores taxas (20%) de resgate analgésico comparados ao grupo LIDO (40%) e CONTROLE (70%).

Um outro estudo, também com cadelas submetidas à OH e seguindo a mesma tendência, demonstrou menores escores de dor pós-operatória e menor necessidade de resgate analgésico pós-operatório pós instilação de bupivacaína IP (Vet Anaesth Analg. 2012 Jul;39(4):426-30). Neste trabalho ainda foi comparada a eficácia da instilação versus a infiltração na linha incisional, confirmando a superioridade da instilação intraperitoneal.

Outros trabalhos também convergiram para a mesma conclusão de que a instilação intraperitoneal de bupivacaína resulta em menor necessidade de resgate analgésico pós-operatório em OH. Interessantemente, num deles (Vet Anaesth Analg. 2016 Sep;43(5):571-8) a conclusão nos diz que parece não haver vantagem em associar a infiltração incisional com a instilação peritoneal. Noutro, comparando bupivacaína com ropivacaína (Vet Anaesth Analg. 2018 Nov;45(6):865-870.), observou-se que as duas tem eficácia semelhante.

Analgesia somente para o pós-operatório?

Em princípio, sim!

Porém, um estudo recente com 40 cadelas submetidas a ovariectomia minimamente invasiva (por videocirurgia) demonstrou que a instilação periovariana de lidocaína 1% (8 mg/Kg no total) parece contribuir para a analgesia durante o procedimento cirúrgico – evidenciado por menores flutuações nos parâmetros fisiológicos e, consequentemente, menor necessidade de resgates analgésicos no transoperatório. Este artigo, intitulado “The effect of splash block on the need for analgesia in dogs subjected to video-assisted ovariectomy” está disponível para acesso livre em Vet Med Sci. 2022 Jan;8(1):104-109. A leitura vale a pena.

Só para OH?

Talvez sim, talvez não…

Para essa estratégia de analgesia faltam estudos em que o cenário cirúrgico não seja a ovariohisterectomia em cadelas. Nesse sentido, o único trabalho disponível em animais, intitulado “Evaluation of the Analgesic Efficacy of Undiluted Intraperitoneal and Incisional Ropivacaine for Postoperative Analgesia in Dogs after Major Abdominal Surgery” não conseguiu identificar diferenças significativas entre os grupos de animais tratados e não tratados com anestésico local intraperitoneal ou incisional. Ele está disponível com acesso livre em Animals (Basel). 2023 Apr 27;13(9):1489.

Enfim… temos mais uma ferramenta que o anestesista pode utilizar para buscar um melhor controle da dor pós-operatória nas cirurgias abdominais. É a experiência de cada anestesista que irá determinar a sua inclusão ou não no protocolo anestésico.

E nunca nos esqueçamos de que a analgesia deve ser SEMPRE multimodal e preemptiva, contemplando todas as etapas do período perioperatório – do pré ao pós.

Espero ter contribuído um pouco para a construção do anestesista que lê essa publicação.

Usem o espaço de comentários para debater e trocar ideias e experiências sobre esse tema. Os encontro lá e até o próximo texto…

Zanoni

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