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Anestesia no paciente diabético

Não é incomum nos depararmos com a necessidade de anestesiar um paciente – cão ou gato – diabético. Tarefa desafiadora, como em qualquer paciente com comorbidades, devemos sempre nos esforçar para oferecer a maior segurança anestésica, aliada à estabilidade fisiológica, bom controle de dor e recuperação pós-anestésica rápida e satisfatória.

Sempre reforço, nas minhas conversas sobre anestesia em especialidades, que o mais importante é conhecer muito bem o paciente – e sua doença. No caso do diabetes mellitus (DM) os pacientes costumam ser aqueles de meia idade a geriátricos, o que já requer de nós cuidados diferenciados. Nos cães o DM costuma ser do tipo insulino-deficiente, muito parecido com o DM tipo 1 em humanos; já nos gatos o DM se assemelha bastante ao tipo 2 humano, ou seja, insulino-resistente.

Main types of diabetes mellitus. Either the pancreas not producing enough insulin or the cells of the body not responding properly to the insulin produced

Independente do tipo, a fisiopatologia do DM terá as mesmas consequências: hiperglicemia, glicosúria, desidratação, perda eletrolítica, perda de massa muscular, e cetogênese aumentada. Quando descompensado ou mal controlado, o DM evoluirá para a cetoacidose – o curso mais grave da doença. Para melhor entender a fisiopatologia do diabetes recomendo a leitura destas duas revisões:

Uma boa avaliação pré-anestésica e controle adequado do diabetes e suas consequências são a chave para uma condução tranquila do paciente durante a anestesia.

Conhecer a evolução do diabetes (há quanto tempo), como vem sendo feita a insulinoterapia e o controle glicêmico e se o paciente apresenta outras outras comorbidades associadas (e como está o manejo delas) nos ajudará no estabelecimento das melhores condutas.

O painel dos exames pré-anestésicos deve ser estendido. Além daqueles que são úteis em qualquer paciente (texto em outro post do blog) podemos incluir a urinálise, um painel de eletrólitos (Na+ e K+), hemogasometria e betahidroxibutirato (BHB); estes exames são importantes, dado o reflexo do DM sobre o equilíbrio eletrolítico (podendo existir hipocalemia e hiponatremia) e estado ácido-base (acidose metabólica por excesso de BHB).

Ainda não há um consenso sobre o jejum pré-operatório para o paciente diabético, uma vez que os dados da literatura são bastante controversos na comparação entre jejum curto (2-4h) versus longo (12 a 18h). Na minha rotina tenho utilizado, com bastante sucesso, as recomendações da American Animal Hospital Association, publicadas no 2020 AAHA Anesthesia and Monitoring Guidelines for Dogs and Cats (J Am Anim Hosp Assoc 2020 Mar/Apr;56(2):59-82.) Em resumo, o procedimento é programado para ser realizado pela manhã, após 4 horas de jejum considerando que última refeição será apenas metade da porção habitual (preferencialmente alimentação pastosa) seguida de metade da dose de insulina utilizada.

O controle glicêmico será bastante cuidadoso no paciente diabético, desde a admissão até a recuperação pós-anestésica. Em princípio, sob insulinoterapia e bem controlado, a glicemia idealmente deverá estar entre 150 – 250 mg/dL; e sempre tomem cuidado com glicemias abaixo de 150 mg/dL, pois isso aumenta o risco de hipoglicemia – que é tão deletéria quanto a hiperglicemia. Alguns pacientes com diabetes de difícil controle poderão exibir glicemias na casa dos 300 mg/dL, sendo este valor aceitável.

Ao receber o paciente e iniciar o seu preparo faremos a primeira glicemia. Estando dentro dos limites adequados, apenas a monitoraremos de hora em hora. Estando acima de 300 mg/dL recomenda-se aplicar 0,1 U/Kg, IM, de insulina regular e faremos a monitoração um pouco mais de perto, a cada 30 min. Ao iniciarmos essa insulinoterapia precisamos estar preparados para manejar uma possível hipoglicemia. Nos casos em que isso ocorrer utilizaremos uma solução de glicose a 5% numa taxa de 5 – 10 mL/Kg/hora em cães e 3 – 5 ml/Kg/hora em gatos. E sempre monitorando de perto a glicemia.

Os pacientes diabéticos são mais propensos à hipotensão transoperatória. Um dos fatores que podem favorecer isso é a hipovolemia pré-existente (consequência da diurese osmótica). Manter o paciente bem hidratado e euvolêmico é uma meta para a anestesia do diabético. Em função disso, as recomendações de hidratação no DM são um pouco mais agressivas que no paciente não diabético. Nos cães, 5 a 10 mL/Kg/hora; nos gatos, 3 a 5 mL/Kg/hora. E, claro, devemos respeitar possíveis comorbidades que requeiram menores taxas de fluido.

E se mesmo assim houver hipotensão transoperatória? Como manejar? Resposta: utilizando os mesmos critérios que já empregamos na rotina – vasoconstritores se o substrato da hipotensão for vasodilatação (como na sepse ou durante o uso de halogenados), inotrópicos se houver baixa contratilidade miocárdica e expansão volêmica se houver hipovolemia. (Prometo, em breve, fazer um texto sobre isso).

Então, a título de cuidados anestésicos para o paciente com DM teremos como metas:

  • o controle glicêmico
  • o manejo hemodinâmico (controlar a hipotensão)
  • o controle térmico (hipotermia é comum, e devemos evitá-la)
  • a manutenção de uma boa ventilação pulmonar e oxigenação
  • a analgesia satisfatória

E sobre o protocolo anestésico? Existe algo específico para o diabético?

Em princípio não há nenhuma contraindicação absoluta para o uso dos fármacos habitualmente empregados na anestesia pelo fato do paciente ser diabético. Devemos apenas ter cuidado com a administração de agonistas alfa-2 adrenérgicos, porque eles podem resultar em um aumento transitório da glicemia. Logo, construiremos nosso protocolo baseado no estado físico e comorbidades do paciente e tipo de procedimento (e duração) ao qual será submetido. E sempre respeitando os princípios da anestesia balanceada com analgesia multimodal e preemptiva.

Devemos considerar sempre a utilização de técnicas de anestesia locorregional, pois além de oferecerem uma excelente analgesia para o trans- e pós-operatório, minimizando o consumo de analgésicos, sedativos e hipnóticos por via sistêmica, ainda contribuem para reduzir ou até mesmo anular a resposta endócrino-metabólica à cirurgia, o que certamente favorecerá o manejo do diabetes e o controle glicêmico.

A recuperação pós-anestésica deve ser assistida e uma vez recuperado da anestesia, é recomendável ofertar alimentação ao paciente (em pequena quantidade) e retornar ao regime habitual de insulina o mais rápido possível – com a monitoração da glicemia. Um bom controle da dor também favorecerá uma melhor recuperação e controle glicêmico.

Para aqueles que se interessarem, deixarei aqui uma revisão recente sobre as considerações da anestesia no paciente diabético. É uma ótima leitura para qualquer anestesista.

Espero que todos tenham aproveitado o texto. Utilizem a vontade os comentários para trocarmos ideias e experiências sobre esse e outros assuntos.

Até o próximo texto…

Zanoni

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