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Buprenorfina

A buprenorfina é um opióide semissintético de longa data, sintetizada em 1966 e introduzida na prática médica nos anos 1980, inicialmente como uma alternativa mais segura (com menos efeitos colaterais) e menos propensa ao abuso em relação aos demais opioides.

Embora já esteja disponível no Brasil há bastante tempo, sua recente apresentação veterinária (BENIV®), tem difundido e impulsionado seu uso pelos anestesistas e clínicos em geral, seja como parte da anestesia balanceada ou manejo da dor – cirúrgica ou não.

Os estudos iniciais, em roedores, mostraram que a buprenorfina é entre 20 e 40 vezes mais potente que a morfina, porém, com efeito teto sobre a depressão respiratória e menor efeito sobre a motilidade gastrintestinal; isso sem contar seu grande índice terapêutico, uma vez que a dose letal é cerca de 1000 vezes maior que a dose efetiva média – o que reflete sua enorme segurança.

A buprenorfina tem elevada afinidade pelos receptores Mu (µ) e Kappa (κ) – cerca de 30x maior para os do subtipo Mu; sobre os receptores Mu tem ação agonista enquanto é antagonista dos receptores Kappa. Outro ponto importante é o fato de que a afinidade pelo receptor Mu é cerca de 80x maior em relação à afinidade da morfina pelo mesmo receptor – o que justifica a sua elevada potência relativa. Aliás, a afinidade de ligação da buprenorfina pelo receptor Mu é tão elevada que seus efeitos agudos são difíceis de antagonizar, até mesmo com a naloxona. E é um opioide de longa duração…

Bom, mas se a buprenorfina é muito mais potente que a morfina, seu uso no tratamento da dor é muito mas eficaz, não? E a resposta é NÃO!

Algo que sempre gera muita confusão quando estudamos os fármacos e sua farmacologia é a associação “errônea” que se faz entre POTÊNCIA e EFICÁCIA. POTÊNCIA é a relação existente entre dose e resposta (DE50) – quanto menor a dose para se observar 50% da resposta máxima, mais potente é o fármaco. Mas as respostas máximas podem ser diferentes para os diversos fármacos de uma mesma classe. E é essa resposta máxima a quem chamamos de EFICÁCIA.

Observe o gráfico a seguir:

Potência X Eficácia

Fica claro que o máximo de analgesia possível com a buprenorfina e com a morfina é diferente: a morfina pode ofertar o dobro de analgesia em relação à buprenorfina. Logo a eficácia da morfina é superior.

Mas a dose necessária para atingir metade desta eficácia é algumas vezes menor para a buprenorfina em relação à dose requerida para a morfina. Por isso dizemos que a buprenorfina é muito mais potente.

Então podemos concluir que o fato de um fármaco ser mais potente não necessariamente significa que ele será mais eficaz (que terá uma ação mais intensa).

Seria então vantajoso usar um fármaco “menos eficaz”? Em determinadas circunstâncias, SIM! Mas para isso precisamos entender quais seriam as características, vantagens e desvantagens de cada um.

Façamos aqui um comparativo entre buprenorfina e morfina:

CaracterísticaBuprenorfinaMorfina
Ação sobre o receptorAgonista parcial Mu e Antagonista KappaAgonista pleno Mu
Afinidade (Mu)Muito altaAlta
Potencia relativaAltaBaixa
Eficácia~ 50% MorfinaAlta
Efeitos adversos (depressão respiratória, ↓ motilidade)Efeito teto (menores)Intensos (dose-dependente)
Duração da açãoLonga (6h-8h)Moderada (~4h)

A longa ação associada à menores efeitos adversos são um grande atrativo para o uso da buprenorfina. Já a eficácia e o poder analgésico elevado da morfina a privilegia para o tratamento da dor de elevada intensidade.

E é claro que somente estes fatores não devem ser os norteadores de nossas escolhas – embora as influenciarão. Precisamos também conhecer os estudos clínicos e seus resultados e, conjuntamente, avaliar em que situações um fármaco será melhor opção que o outro.

Com o intuito de avaliar a farmacocinética da buprenorfina, um estudo em cadelas submetidas à ovário-histerectomia (OH) demonstrou que seu uso no pós-operatório – em infusão contínua (bolus de 15µg/Kg seguido de 2,5µg/Kg/hora) – foi satisfatório para o controle da dor pós-operatória. Vale ressaltar que todas as pacientes deste estudo receberam uma dose de anti-inflamatório no pré-operatório e infiltração de lidocaína associada á instilação nos pedículos ovarianos (veja o texto sobre isso no blog).

Um outro trabalho, comparando a eficácia da buprenorfina e um AINE seletivo COX-2, demonstrou que ambos são eficazes no controle da dor perioperatória. Foram utilizadas doses de 20 µg/Kg de buprenorfina na pré-medicação com uma segunda dose 6 horas após. Entretanto, quando utilizados de forma isolada, o AINE promoveu melhor analgesia em relação à buprenorfina. Também se observou maior ocorrência de eventos gastrintestinais (vômito e diarreia) nos animais tratados com o AINE (25-35%).

Nessa mesma linha posso ainda citar mais duas referências que comprovam a eficácia da buprenorfina associada ao uso de anti-inflamatórios para o controle da dor pós-operatória nas OHs (Shih e cols, 2008; Watanabe e cols, 2018). Vale à pena a leitura!

Em nossa rotina (a minha e de alguns colegas e pós-graduandos) é muito comum utilizarmos outro opióide no período perioperatório: a metadona. Será que existe alguma superioridade, vantagem ou desvantagem de seu uso em relação à buprenorfina? Vamos lá …

Um estudo publicado no Journal of Small Animal Practice [2018;59(9):539-546] fez esta comparação. Quatro grupos de cadelas submetidas à OH foram pré-medicadas com acepromazina (0,05 mg/Kg) OU medetomidina (10 µg/Kg) associadas à buprenorfina (20 µg/Kg) OU metadona (0,3 mg/Kg). A anestesia foi induzida com propofol e mantida com isoflurano e ao final dos procedimentos a medetomidina foi antagonizada.

No pós-operatório mais resgates analgésicos foram requeridos nos grupos que receberam buprenorfina (45%) em relação aos que receberam metadona (20%) na MPA, o que sustenta a hipótese de que a metadona promove uma analgesia superior à buprenorfina nas OHs. Essa superioridade já havia sido apontada num outro cenário, com procedimentos ortopédicos (J Small Anim Pract. 2013; 54(8):418-24)

O fato é que quando conversamos sobre analgesia dentro da anestesia moderna não podemos nos esquecer de que ela sempre deve atender à dois princípios: o da analgesia preemptiva e da estratégia multimodal. Associar fármacos e técnicas que atuem sobre as diferentes etapas da nocicepção é o que, do ponto de vista clínico, nos trará a eficácia analgésica que tanto almejamos.

E com certeza ainda há muito o que investigar, não somente sobre o uso da buprenorfina, mas também de outros opioides e analgésicos não opioides no manejo da dor perioperatória em cães e gatos.

O dever do anestesista é o de sempre buscar informações consistentes e atualizadas na literatura especializada para que, aliadas à sua experiência, o permita construir o melhor planejamento – eficaz e seguro – para o seu paciente.

Este texto foi preparado à partir do questionamento de um colega sobre eu usar e o que achava da buprenorfina. Como minha experiência é extremamente limitada com o uso dela, resolvi levantar algumas informações e compartilhar com vocês … espero ter trazido mais um material de relevância por aqui e, como gosto de dizer: vamos dar o próximo passo juntos. Vamos usar o espaço do blog para trocar ideias e melhorar este e outros conteúdos.

Até o próximo texto …

Algumas referências que foram (ou não) usadas na criação deste texto:

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