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Anestesia em cirurgias oculares: como centralizar o olho?

ecentemente, enquanto fazia a anestesia de um cãozinho com catarata, resolvi engajar com as pessoas na rede social e me deparei com duas questões que ainda geram muita dúvida e/ou polêmica: a primeira, qual é a técnica que uso para centralizar o olho durante a anestesia nestes procedimentos; a outra, o medo e o estigma do uso dos bloqueadores neuromusculares.

Primeiramente, vamos entender o que significa o desafio do “centralizar o globo ocular” em algumas cirurgias oftalmológicas…

Quanto submetemos o paciente (um cão ou gato) à anestesia geral e o deixamos em plano anestésico cirúrgico (estágio III, 2º plano) o esperado é que o globo ocular rotacione de forma a – muitas vezes – vermos apenas a esclera ao inspecionarmos o olho.

estágios de anestesia
Posição do globo ocular esperada em função do plano anestésico.

E, claro, isso vai contra o que o procedimento cirúrgico requer – a centralização do globo ocular. Mas além da centralização ainda precisamos considerar a acinesia. O globo ocular tem que ser mantido centralizado ao longo do tempo, sem a mínima movimentação.

E aqui vai uma mensagem importantíssima: aprofundar o plano anestésico NUNCA deve ser considerada uma opção. Jamais. Buscar essa estratégia para tentar centralizar o olho expõe o paciente à depressão fisiológica e riscos desnecessários. E isso pode ser caracterizado como erro médico por parte do anestesista.

Precisamos então buscar alternativas que nos permitam manter o globo ocular imóvel e centralizado ao longo de uma anestesia geral em plano anestésico adequado. E as opções são duas: anestesia locorregional (ALR) ou bloqueadores neuromusculares (BNMs).

Aqui há uma grande disputa entre preferências individuais, vantagens e desvantagens de cada abordagem e até mesmo questões relacionadas à escola de formação da equipe cirúrgica. Vou pontuar as características e particularidades de cada técnica:

Bloqueios regionais

Há uma grande variedade de técnicas e abordagens quando tratamos dos bloqueios regionais. De forma simples, estes bloqueios consistem na aplicação de uma solução de anestésico local nas proximidades do(s) nervo(s) de interesse; isso bloqueia a condução nervosa associada e pode causar relaxamento muscular (se for um nervo motor) e/ou perda da sensibilidade (se o nervo for sensitivo).

Especificamente para o globo ocular as técnicas de ALR promoverão os dois tipos de bloqueio (motor e sensitivo), o que além da centralização do globo ocular (pelo relaxamento da musculatura extraocular) promoverá analgesia para o procedimento cirúrgico e contribuirá para a midríase – duas excelentes vantagens da ALR nesse cenário.

Embora você que está lendo esse texto deva estar ansioso para saber quais são as técnicas de bloqueios regionais que podemos usar, preciso que primeiramente entenda alguns aspectos anatômicos relevantes:

Vamos relembrar quem é a musculatura extraocular (responsável pela movimentação do globo) – sobre a qual precisamos induzir o relaxamento:

  • 4 músculos retos (superior, inferior, lateral e medial)
  • 2 músculos oblíquos (superior e inferior)

Na sequência, quem são os nervos responsáveis pelo controle destes músculos:

  • n. oculomotor (III)
  • n. troclear (IV)
  • n. abducente (VI)

E também os nervos de natureza sensitiva:

  • n. óptico (II)
  • n. trigêmeo (V), através do seu ramo oftálmico (V1)

E não nos esqueçamos de que existe uma extensa vascularização associada ao olho e à periórbita

Agora podemos conversar sobre as técnicas. Estas, basicamente, consistem na aplicação de anestésico local dentro ou fora do cone muscular, sendo respectivamente denominadas intraconal e extraconal. O posicionamento da agulha pode se dar atrás do globo ocular ou na região equatorial do globo ocular, dando à essas técnicas os nomes retrobulbar e peribulbar, respectivamente. A técnica retrobulbar resulta normalmente numa na aplicação intraconal do anestésico local, enquanto a peribulbar é extraconal.

Há diversos trabalhos na literatura explorando essas técnicas em cães, com as abordagens mais distintas possíveis; transconjuntival, transpalpebral, percutânea supraorbital … com um único ponto de agulhamento, ou dois, ou quatro … às cegas ou guiado por ultrassom. As possibilidades são diversas. Cada anestesista tem a sua preferência (e o oftalmo que adere à técnica também).

Vou deixar aqui algumas referências que descrevem essas técnicas de ALR:

Quanto ao anestésico local, lidocaína 2% será a melhor opção em grande parte dos procedimentos. Ela promoverá centralização, acinesia e analgesia por cerca de 1h – tempo mais do que suficiente para a realização do procedimento – uma facoemulsificação, por exemplo.

Outro aspecto relevante é a escolha do volume da solução de anestésico local a ser aplicada. Na literatura existem diversas sugestões de volumes a serem utilizados nas abordagens peri- e retrobulbar; algumas empíricas, outras associadas ao peso do paciente. E isso pode levar a aplicação de grandes volumes, além do necessário para a execução da técnica com eficácia.

Um estudo morfométrico, publicado em 2018, conseguiu estabelecer uma relação entre o tamanho do crânio do cão e o volume da periórbita; à partir daí recomenda-se o uso de 0,1 mL/cm de tamanho do crânio (ou distância fronto-occipital) nos bloqueios retrobulbares.

Embora essas técnicas de ALR sejam seguras e, com treinamento adequado, relativamente fáceis de serem executadas, existem riscos e potenciais complicações que devem ser conhecidas:

  • quemose
  • hemorragia e hematoma retrobulbar
  • exoftalmia
  • perfuração ocular
  • hemorragia vítrea
  • lesão do nervo óptico
  • intoxicação pelo anestésico local
** Não desanime, a maioria destas complicações são raras!

Bloqueadores neuromusculares (BNMs)

Aqui temos a nossa alternativa aos bloqueios regionais.

Os BNMs são fármacos que bloqueiam a transmissão de potenciais de ação na placa motora. Em linhas gerais são antagonistas de receptores nicotínicos (Nm), que impedem o acoplamento da acetilcolina à este receptor, sua ativação e o desenvolvimento de um potencial de ação na fibra muscular esquelética. Resultado: o músculo permanece relaxado (paralisia flácida).

Junção neuromuscular. ACh, acetilcolina; Receptor do tipo nicotínico.

A grande questão aqui é a de que os BNMs são fármacos que tem ação sistêmica, logo, podem interferir com a atividade de diversos (senão todos) músculos esqueléticos do corpo.

Os BNMs são amplamente utilizados nos pacientes em que se deseja realizar ventilação mecânica e, em humanos, até como adjuvante para realizar a intubação orotraqueal ou melhorar o relaxamento muscular durante a anestesia geral. Talvez disso resulte parte do receio de os utilizarmos nas cirurgias oculares. Será que meu paciente ficará bloqueado a ponto de precisar de ventilação mecânica? Outras preocupações comuns são a da recuperação prolongada, da necessidade de “reversão” do bloqueio neuromuscular com anticolinesterásicos (como a neostigmina), do risco de recurarização e até mesmo de efeitos adversos cardiovasculares. O que posso lhes dizer é: Calma! Dá para utilizar os BNMs com bastante segurança.

Vamos considerar duas coisas: primeiramente, as doses requeridas para atingirmos nosso objetivo sobre o globo ocular são muito mais baixas do que as utilizadas para bloqueio neuromuscular na ventilação mecânica. Como o bloqueio se estabelece de forma concêntrica (das extremidades do corpo para a região central), é possível – com baixas doses – direcionar o bloqueio para a musculatura extraocular.

sequência do bloqueio neuromuscular
Fonte: NATALINI, CC. Teoria E Técnicas Em Anestesiologia Veterinária. 2007.

Além disso, os BNMs mais modernos como o rocurônio, atracúrio e cisatracúrio, têm uma duração de suas ações relativamente curta e não apresentam efeito cumulativo (pelo menos até certa quantidade de repetições de dose).

Para seguir a nossa conversa a partir deste ponto, vou usar o BNM rocurônio como referência, por ser o BNM mais popular (usado em animais) na atualidade.

Em cães, o rocurônio na dose de 0,05 mg/Kg tem sido suficiente para alcançar a centralização do globo ocular (com latência de até 1 minuto e duração média em torno de 20 minutos). Um estudo de 2013, publicado na Veterinary Ophtalmology, demonstrou haver grande segurança com o emprego dessa dose de rocurônio. Todos os cães que receberam 0,05 mg/Kg se mantiveram em ventilação espontânea, normoventilados, sem alterações hemodinâmicas e sem bloqueio detectável ao TOF durante todo o período do estudo. Recomendo bastante a leitura do artigo em questão, pois foi um dos que me fez aderir com maior segurança e tranquilidade ao uso dos BNMs em oftalmologia.

ALR vs BNM

Então qual estratégia iremos utilizar?

Vários fatores estão envolvidos nessa decisão: a experiência com a técnica, preferências por parte da equipe (anestesista e cirurgião), características e limitações do paciente e, claro, as limitações da técnica.

Ao utilizarmos os BNMs nunca devemos nos esquecer que eles não conferem qualquer grau de analgesia ou midríase para o procedimento, logo, outras estratégias de analgesia (infusões analgésicas, p.e.) e que induzam midríase (midriáticos de uso tópico, injeção intracameral de solução contendo adrenalina) precisarão ser associadas.

Se utilizarmos os bloqueios regionais, mesmo havendo analgesia satisfatória para o procedimento, precisamos conduzir a anestesia geral de forma balanceada e usar a estratégia de analgesia multimodal, associando fármacos que atuem em outras etapas na nocicepção (anti-inflamatórios, analgésicos sistêmicos …) para um melhor resultado e recuperação pós-operatória.

Espero que esse texto tenha sido esclarecedor para aqueles que tem dúvidas quanto à este aspecto da anestesia para cirurgia ocular. Conto com seus comentários e opiniões para, juntos, o melhorar. Utilizem o fórum de discussão para trocarmos ideias e experiências sobre o assunto.

Até a próxima atualização.

Zanoni

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