Hoje resolvi abordar um pouco sobre esse grupo de fármacos que tanto amamos: os anestésicos locais (AL). Seja para bloqueios, analgesia sistêmica ou até no manejo das arritmias esses fármacos estão muito presentes em nossa rotina.
A história dos AL começa nos meados do século XIX com a purificação da cocaína por Albert Niemann – sim, esse senhor abriu a caixa de Pandora – e as investigações posteriores de Karl Köller e William Halsted (que sucumbiu ao vício duplo – cocaína e morfina). Embora promissora no tratamento da dor cirúrgica, os efeitos estimulantes e o risco de dependência química incentivaram o desenvolvimento de substâncias que mantivessem as propriedades dessensibilizantes sem o risco de adição e menores efeitos colaterais, decorrentes da ação estimulante.
Então, em 1890 nascia o primeiro AL sintético – a benzocaína. E à partir deste momento uma série de novas moléculas começaram a ser desenvolvidas.
A forma pela qual os ALs exercem seus efeitos é bem conhecida: o bloqueio de canais de sódio nos neurônios, inibindo assim a geração e a propagação dos potenciais de ação.
Os AL também podem atuar por outros mecanismos, como alterar a condutância em canais de Ca2+ e K+, além de ações mediadas pela sinalização de receptores metabotrópicos (aqueles acoplados à proteína G).
Logo, quando aplicado ao redor de um nervo periférico ou de terminações nervosas a condução e propagação da informação é inibida de forma temporária e reversível. Se as fibras nervosas em questão forem sensitivas isto resultará na perda da sensibilidade (analgesia); se forem motoneurônios, no relaxamento muscular da região correspondente ao bloqueio.
Poderíamos limitar nosso texto por aqui, mas existem muitos detalhes que envolvem a farmacologia dos ALs e que são de grande importância para o anestesista, para que ele consiga escolher corretamente qual fármaco irá utilizar e como utilizá-lo da melhor forma possível.
1) Química dos anestésicos locais
Os ALs sempre pertencerão a duas classes de acordo com sua estrutura geral: ésteres ou amidas. Para não tornar a conversa cansativa, vamos assumir que os ésteres podem ser metabolizados rapidamente pelas esterases teciduais, o que minimiza a necessidade de metabolização hepática e limita bastante a duração de sua ação nos tecidos. Muitos AL de uso tópico são pertencentes à classe dos ésteres, como a tetracaína, a benzocaína e a proparacaína.
Já os do tipo amida irão requerer biotransformação hepática, o que aumenta a duração de suas ações no organismo e, consequentemente, sua toxicidade sistêmica. Esta classe, representada principalmente pela lidocaína e pela bupivacaína, é a mais empregada nos bloqueios loco-regionais.
2) Propriedades físico-químicas
Ao chegarem nos tecidos os ALs se ligarão às proteínas, o que impacta diretamente a duração de seus efeitos. Quanto maior for essa taxa de ligação às proteínas, por mais tempo o AL pode ficar retido no tecido onde foi aplicado e ligado onde se dá sua ação – os canais de sódio (que também são proteínas).
A interação do AL com o canal de sódio se dá no meio intracelular, ou seja, o anestésico local precisa atravessar a bicamada lipídica representada pela membrana neural para então alcançar seu sítio de ligação. E aqui temos duas propriedades que influenciarão isso: a lipossolubilidade e o grau de ionização do AL.
Quanto mais lipossolúvel, mais moléculas do AL conseguem atravessar a membrana celular e chegar ao seu local de ação. Isto afetará a potência do AL, uma vez que mesmo em menor concentração mais moléculas de um AL altamente lipossolúvel poderão atingir seu alvo e bloquear a condução nervosa. A bupivacaína, por exemplo, é mais lipossolúvel e, consequentemente, mais potente que a lidocaína.
* E, por favor, não confundam potência com eficácia!!!
Sobre o grau de ionização lhes darei duas opções:
I) se estiver sem a menor vontade de ouvir falar sobre ácidos, bases, pH e pKa apenas entenda que os AL são ácidos fracos e funcionam mal (sua latência aumenta e eficácia diminui) em meio ácido. Então pule para a próxima seção.
II) se quiser entender o por quê dos AL não funcionarem bem em meio ácido, aqui está a explicação:
Os anestésicos locais são fármacos de natureza “base fraca”. Em solução (pode ser no frasco-ampola ou no tecido onde foi aplicado) os AL se apresentarão de duas formas: uma que chamaremos de forma molecular, não ionizada (B) e outra com carga elétrica, protonada ou ionizada (BH+).
- Somente formas não ionizadas (B) conseguem atravessar as membranas celulares. As formas BH+ são repelidas na membrana celular.
- TODO AL tem um determinado pKa, que é o valor de pH do meio onde 50% das moléculas do AL estarão na forma B e 50% na forma BH+.
- Pela sua natureza básica, quanto menor for o pH do meio (em relação ao pKa do AL) maior será a proporção de formas ionizadas (BH+) deste AL. E isto dificulta ou atrasa a entrada das moléculas do AL nos neurônios.
Para sua surpresa (ou não), em pH fisiológico (~ 7,4), para os anestésicos locais o meio sempre será ligeiramente ácido, havendo mais formas “BH+” em relação às “B”. Isso ocorre porque o pKa de qualquer AL é maior que 7,4.
Em pH fisiológico a lidocaína (cujo pKa é 7,7) exibe aproximadamente 76% de suas moléculas na forma ionizada “BH+” (apenas 24% disponíveis para atravessar a membrana neural). Com a bupivacaína (pKa 8,1) isso é mais intenso ainda: em pH fisiológico cerca de 83% estará na forma ionizada. E é este maior grau de ionização que leva à maior latência da bupivacaína. Agora imagine quando o meio estiver realmente ácido …
Espero realmente que tenha ficado claro para você que chegou até aqui =)
3) Arranjo somatossensorial e bloqueio diferencial
Imagine que um nervo é (ou pode ser) formado por diferentes tipos de fibras nervosas:
- Fibras C, amielínicas, também chamadas de fibras de dor “lenta” (sensação de dor e temperatura)
- Fibras B, pouco mielinizadas, como as fibras autonômicas simpáticas.
- Fibras Aδ, moderadamente mielinizadas, as fibras de dor “rápida” (sensação de dor e temperatura)
- Fibras Aβ, bastante mielinizadas, como fibras sensitivas para tato discriminativo e pressão (estímulos inócuos)
- Fibras Aα, os motoneurônios, extremamente mielinizados.
Quanto maior a mielinização da fibra nervosa, mais rápida é a velocidade da condução (uma vez que a condução é saltatória)
Quando aplicamos o anestésico local ao redor de um nervo contendo diversos tipos de fibras devemos considerar:
- Que o nervo tem uma organização estrutural complexa, desde o neurônio individualmente, passando por um conjunto de neurônios (o fascículo nervoso), até o nervo propriamente dito – um conjunto de fascículos nervosos. Cada uma destas 3 unidades está envolvida por uma camada de tecido conjuntivo, respectivamente denominadas endoneuro, perineuro e epineuro.
- Que existe uma organização destas fibras dentro de cada fascículo nervoso, onde fibras autonômicas e sensitivas são mais periféricas enquanto os motoneurônios são mais centrais.
- Caso a área de inervação seja extensa, os fascículos nervosos mais periféricos inervam a área mais proximal e os centrais a área mais distal.
Podemos então esperar que, quando aplicamos o anestésico local ao redor de um tronco nervoso (como o plexo braquial) a instalação temporal do bloqueio se dará no sentido proximal-distal. E, pela distribuição das fibras dentro dos fascículos nervosos, primeiro ocorrerá bloqueio autonômico, seguido do bloqueio sensitivo e – por último – bloqueio motor. E a recuperação da anestesia local se dá no sentido oposto (motor, sensitivo e autonômico).
4) Aditivos
Podemos associar aos ALs uma série de substâncias que mudem suas propriedades físico-químicas. Um das associações mais conhecidas são os vasopressores (como a lidocaína com adrenalina 1:200.000). Os vasopressores reduzem a taxa de absorção sistêmica do AL e, consequentemente, aumenta a duração da anestesia local (em torno de 30%) – além de permitir o aumento da dose do AL (até 50%).
Se revisarmos a literatura, veremos que uma série de outros aditivos podem ser associados aos anestésicos locais, como os glicocorticoides, alfa-2-agonistas, bicarbonato, hialuronidase…esse pode ser um tópico interessante para discussão, pois é muito polêmico. Segundo o Dr. Hadzic (fundador da sociedade de anestesia regional de Nova Iorque), o único aditivo que realmente funciona é a adrenalina. Como eu disse, polêmico.
5) Dose? Volume? Concentração?
Quase sempre me perguntam “qual é a dose que você usa para o bloqueio X ou Y?” e eu quase sempre respondo “nenhuma”. CALMA! É óbvio que ao aplicar qualquer fármaco no paciente estaremos usando uma determinada dose. E para os anestésicos locais existem as doses preconizadas para as diferentes espécies.
Para eu te responder essa pergunta você precisará entender que o bloqueio da transmissão nervosa depende do anestésico local envolver o nervo de interesse, penetrar sua estrutura e, para cada neurônio individualmente, atingir um segmento de pelo menos 2 nodos de Ranvier. O que irá influenciar isso? Além da correta execução da técnica, o VOLUME utilizado!
E para o anestésico local penetrar com eficiência todos os fascículos e conseguir alcançar as diferentes fibras nervosas e se manter lá em quantidade suficiente ao longo do tempo eu preciso de CONCENTRAÇÃO!
Então podemos dizer que eficácia, duração e tipo de bloqueio (sensitivo, motor ou ambos) serão sempre dependentes do volume e concentração do AL utilizado. As diferentes técnicas de anestesia locorregional (ALR) são descritas nesses termos, sempre buscando entender qual é o menor volume necessário e as concentrações adequadas dos ALs para que se obtenha a eficácia desejada.
E a dose? Onde ela entra?
Dose é o produto do volume e concentração utilizados. A título de exemplo, se eu aplicar no meu paciente 0,1 mL/Kg (volume) de bupivacaína 0,5% (5 mg/mL; concentração) estarei fazendo uma dose de 0,5 mg/Kg.
Quando planejamos uma técnica de ALR extraímos a dose para verificar se estamos dentro dos limites de utilização para aquele fármaco.
6) Farmacocinética
Imagine que, à partir do local de aplicação, o AL será absorvido, distribuído sistemicamente, biotransformado no fígado (se do tipo amida) e, por fim, eliminado pelos rins.
A velocidade com a qual o AL é absorvido é dependente de diversos fatores, como o local de aplicação, a quantidade/dose, ligação às proteínas e a vasoatividade do próprio AL ou dos adjuvantes. Em ordem, os locais com maior velocidade de absorção são a via intrapleural > intercostal > epidural > plexo braquial > subcutâneo.
A mesma dose/volume de AL aplicada por via intercostal, por exemplo, resulta em maiores concentrações plasmáticas e o bloqueio tem menor duração do que se este AL fosse aplicado pela via epidural ou subcutânea. E, paralelamente, isso acaba gerando maiores concentrações plasmáticas do AL pela via intercostal em comparação à subcutânea.
Como os AL do tipo amida são dependentes da biotransformação hepática e eliminação renal, poderá haver acúmulo do AL intacto ou de seus metabólitos em caso de disfunção hepática ou renal, respectivamente. No caso da lidocaína, o baixo fluxo sanguíneo hepático também reduzirá seu clearance.
Posso usar anestésicos locais no hepatopata e no nefropata? Sim, mas com cautela, planejando as menores cargas possíveis do AL.
Os AL, embora sejam fármacos bastante seguros, exibem toxicidade local e sistêmica. Ao serem absorvidos para a circulação sistêmica podem se distribuir para outros tecidos excitáveis, como neurônios no SNC, músculo cardíaco, liso e esquelético. E, ao interagirem com os canais de sódio nestes tecidos podem afetar suas funções e resultar em efeitos “colaterais”. Tais efeitos são dependentes da concentração plasmática e, em algum casos, são até desejáveis. Em baixas concentrações plasmáticas a lidocaína tem ação sedativa, antiarrítmica e analgésica. Mas à medida que a concentração plasmática aumenta podem ocorrer eventos que coloquem a vida do paciente em risco, como convulsões, coma, hipotensão e parada cardiorrespiratória.
Mas fiquemos tranquilos: se respeitarmos os limites de dose que devem ser administradas ao paciente (e suas vias de administração) dificilmente nos depararemos com esta situação.
De acordo com grande parte da literatura, as doses máximas recomendadas para a lidocaína e bupivacaína quando utilizadas nas técnicas de anestesia locorregional em cães e gatos são:
| Cão | Gato |
Lidocaína | 7 mg/Kg | 5 mg/Kg |
Bupivacaína | 2 mg/Kg | 1,5 mg/Kg |
7) Outras ações dos anestésicos locais
Nas últimas décadas uma série de efeitos que vão além da dessensibilização localizada e da ação antiarrítmica têm sido descobertos. Alguns através de estudos in vitro, outros à partir de estudos in vivo:
- Ação anti-inflamatória, uma vez que pode reduzir a aderência e migração leucocitária para sítios de inflamação.
- Em altas concentrações tem ação antibacteriana (mas essas concentrações não ocorrem durante o uso habitual dos AL)
- Pela redução da resposta de estresse ao trauma e cirurgia, bom controle da dor e por permitir a redução do uso de opioides, pode reduzir a imunossupressão no paciente oncológico cirúrgico. Indiretamente, isso pode se traduzir numa propriedade anti-metastática. MAS NÃO VOS EMOCIONAIS!!! Os estudos que apontam neste sentido ainda são muito limitados.
Como vimos, as propriedades e características dos AL precisam ser bem conhecidas pelo anestesista, para que ele consiga usar este recurso da melhor forma possível na elaboração do planejamento anestésico para o seu paciente.
O desenvolvimento de novas moléculas de anestésicos locais não tem estado em evidência nas últimas duas décadas, entretanto, novas aplicações para os AL já existentes, novas técnicas de anestesia locorregional e novas formulações para os AL têm sido promissoras.
As formulações lipossomais (como a bupivacaína lipossomal, EXPAREL®) parecem ser o futuro neste sentido. Estes lipossomas (vesículas contendo o AL) permitem a liberação contínua e sustentada do AL à partir do local de sua aplicação, promovendo analgesia duradoura por muitas horas - ou até mesmo dias.
Embora o texto não tenha ficado tão “enxuto” é apenas uma síntese sobre os anestésicos locais, de forma genérica. Vamos usar o espaço de discussão no fórum para trocar ideias e experiências sobre o uso dos AL.
Como todos os textos deste blog, esta é apenas uma versão que poderá ser (e será) melhorada e complementada.
Deixarei por aqui algumas referências para quem se interessar em ler mais sobre este assunto.
- Taylor A, McLeod G. Basic pharmacology of local anaesthetics. BJA Educ. 2020;20(2):34-41.
- Michel-Levy JM. Pharmacokinetics and Pharmacodynamics of Local Anesthetics. In: Topics in Local Anesthetics, Intechopen, 2020.
- Grubb T, Lobprise H. Local and regional anaesthesia in dogs and cats: Overview of concepts and drugs (Part 1). Vet Med Sci. 2020;6(2):209-217.
Até o próximo texto,
Zanoni